Por: Leonardo Sakamoto
A Câmara dos Deputados está
prestes a aprovar um projeto que amplia os casos em que pode ocorrer
terceirização no Brasil.
– Ah, japa, mas eu não tenho nada
a ver com isso.
Bem, se você não se preocupa com
décimo-terceiro salário, adicional de férias, FGTS e Previdência Social, então
nem leia esse post.
Caso contrário, deveria saber que
o projeto de lei 4330/2004, de autoria do deputado federal Sandro Mabel
(PMDB-GO), que legaliza a contratação de prestadoras de serviços para
executarem atividades-fim em uma empresa, pode ser votado nesta semana. Ou
seja, de uma hora para outra, a empresa em que você trabalha pode pedir para
você abrir uma empresa individual e começar a dar nota fiscal mensalmente para
fugir de impostos e tributos. Escrevi um texto, tempos atrás, para tentar
explicar o que está em jogo e o retomo a discussão neste post.
Por exemplo, uma usina de cana
contrata trabalhadores de outra empresa para produzir cana para ela. Dessa
forma, se livra dos direitos trabalhistas e sociais a que seu empregado teria
direito, jogando a batata quente para o colo de uma pessoa jurídica menor. Que
nem sempre vai honrar os compromissos assumidos, agir corretamente ou mesmo
pagar os salários. Antes da ação do poder público para regularizar essa
esbórnia, havia usinas no interior paulista sem um único cortador de cana
registrado, enquanto milhares se esfolavam no campo para garantir o açúcar do
seu cafezinho e o etanol limpo do seu tanque.
Casos famosos de flagrantes de
trabalho escravo surgiram por problemas em fornecedores ou terceirizados, como
Zara, Le Lis Blanc, MRV, entre tantos outros. O governo federal e o Ministério
Público do Trabalho puderam responsabilizar essas grandes empresas pelo que
aconteceu na outra ponta por conta de uma decisão do Tribunal Superior do
Trabalho, que garante a responsabilidade sobre os trabalhadores terceirizados
na atividade-fim.
O projeto de lei que está para
ser votado quer mudar isso, entre outros pontos polêmicos. Centrais sindicais
afirmam que isso pode contribuir com a precarização do trabalho. Reclamam que,
transformado em lei, os chamados “coopergatos'' (cooperativas montadas para
burlar impostos) e as pessoas-empresa (os conhecidos “PJs'') irão se
multiplicar e o nível de proteção do trabalhador cair. Segundo eles, setores como empresas têxteis,
de comunicações e do agronegócio têm atuado pela legalização da terceirização
em qualquer atividade com pesados lobbies no Congresso Nacional.
“Ah, mas eu quero ser livre para
fazer ser frila.'' Beleza, fique à vontade. Mas e quem tem um emprego fixo e
quer alguma estabilidade e segurança, condições conquistadas a duras penas e
presentes na Consolidação das Leis do Trabalho? Quem diz que a CLT é anacrônica
ou não vive pelo salário ou precisa fazer uma avaliação urgente sobre sua
própria vida.
De acordo com um estudo do
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em
parceria com a Central Única dos Trabalhadores, em média um trabalhador
terceirizado trabalha três horas a mais por semana e ganha 27% menos que um
empregado direto. No setor elétrico, por exemplo, a taxa de mortalidade de um
funcionário de uma prestadora é 3,21 vezes superior ao de um trabalhador de uma
empresa contratante.
A
terceirização tresloucada transforma a dignidade em responsabilidade de
ninguém.
Mais ou menos assim: Um consórcio
contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata a Maga
Patalógica, que subcontrata o Donald, que deixa tudo na mão de três pequenas
empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem
as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas conduz o barco
mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem bizarrices. Depois,
quando tudo acontece, Donald, Patalógica, Tio Patinhas e o consórcio dizem que
o problema não é com eles – afinal, eles não rabiscaram carteira de trabalho
alguma. E aí, ninguém quer pagar o pato – literalmente. Ficam os trabalhadores
a ver navios, como Patetas.
Aprovado pela Câmara dos
Deputados, o substitutivo de Arthur Maia (SD-BA) sobre o projeto de Mabel vai
para o Senado. E de lá para a sanção presidencial. Aposto uma caixa com os DVDs
das três temporadas completa de House of Cards que um veto de Dilma seria
derrubado em velocidade recorde pelo Congresso. Isso se ela quisesse vetar, é
claro – coisa pelo qual não apostaria um tostão.
A Câmara dos Deputados recebeu um
parecer assinado por 19 dos 26 ministro do Tribunal Superior doTrabalho,
criticando o projeto de lei e alertando para as consequências negativas de sua
aprovação. “Ao permitir a generalização da terceirização para toda a economia e
a sociedade, certamente provocará gravíssima lesão social de direitos sociais,
trabalhistas e previdenciários no País, com a potencialidade de provocar a
migração massiva de milhões de trabalhadores hoje enquadrados como efetivos das
empresas e instituições tomadoras de serviços em direção a um novo
enquadramento, como trabalhadores terceirizados, deflagrando impressionante
redução de valores, direitos e garantias trabalhistas e sociais'', afirma.
E, em decorrência do PL, o
parecer prevê que “o rebaixamento dramático da remuneração contratual de
milhões de concidadãos, além de comprometer o bem estar individual e social de
seres humanos e famílias brasileiras, afetará fortemente, de maneira negativa,
o mercado interno de trabalho e de consumo, comprometendo um dos principais
elementos de destaque no desenvolvimento do País. Com o decréscimo
significativo da renda do trabalho ficará comprometida a pujança do mercado
interno no Brasil.'' Outras cartas também foram produzidas por juízes,
procuradores e auditores fiscais do trabalho, entre outras categorias, contra o
projeto.
Há algum tempo, solicitei a três
atores do direito, especialistas no tema, que explicassem as consequências
negativas para os trabalhadores caso o projeto de lei seja aprovado. Trago as
respostas aqui novamente.
Dêem uma olhada nas avaliações.
Se após isso, continuarem achando que não nada lhe diz respeito ou que a
discussão sobre direito do trabalhador é coisa de comunista, faça-me um favor:
não se sinta culpado quando seu filho ou filha perguntar, daqui a uns anos,
algo do tipo “mãe, pai, o que é emprego?''
Rafael
de Araújo Gomes, procurador do trabalho da 15a Região
A consequência da aprovação de
projetos sobre o tema em trâmite no Congresso Nacional é que poderá uma
empresa, se assim desejar, terceirizar não apenas parte de suas atividades, mas
todas elas, não permanecendo com qualquer empregado. Teríamos então uma empresa
em funcionamento, com atividade econômica, mas sem nenhum funcionário.
Tomemos, para melhor visualização
de tal disparate, autorizado pelos projetos, o caso do banco Bradesco, empresa
com capital social superior a 30 bilhões de reais e mais de 70 mil empregados.
Aprovada a terceirização nos
moldes pretendidos, nada haverá na legislação que impeça o Bradesco de
livrar-se de todos os seus empregados, permanecendo com nenhum, mediante a
terceirização de todas as funções. Se tal opção for economicamente vantajosa ao
banco, ela poderá ser adotada. Teremos então uma empresa com capital social,
faturamento e lucro da ordem de vários bilhões de reais, e nenhum empregado, ou
seja, nenhum ônus trabalhista.
Parece o cenário com o qual
sonharam os banqueiros de todas as épocas em seus devaneios mais loucos, não?
Todos os lucros, e nenhuma responsabilidade. Pois tal sonho de qualquer
capitalista poderá enfim se transformar em realidade, em nome da “modernidade”
e da “competitividade”.
Renato
Bignami, auditor fiscal do trabalho em São Paulo
Ao autorizar, via processo
legislativo, a subcontratação da principal (ou principais) atividade(s) de
determinada empresa, sem que haja uma contrapartida jurídica de manutenção da
garantia do equilíbrio contratual, a exemplo da responsabilização solidária, o
legislador está dando um tiro de misericórdia no direito do trabalho.
Todas as relações irão se dar com
base no direito civil/mercantil, privatistas ao extremo. Futuramente não haverá
mais empregados. Quem irá contratar uma pessoa que reclama, que fica grávida,
que falta ao serviço, que não abaixa a cabeça e atende a todo tipo de ordem, e
que, além do mais, custa o dobro e possui direitos pétreos, como limite de
jornada de trabalho e piso salarial? Irá naturalmente contratar uma empresa
terceirizada, que, por sua vez, também irá contratar uma quarteirizada e que,
em última análise, contratará um micro-empreendedor individual, por exemplo,
sem que isso possa ser considerado fraude, à luz da legislação proposta pelo
deputado federal Sandro Mabel.
Trata-se da externalização total
e completa dos riscos da atividade econômica sem que haja um mínimo de divisão
dos lucros dela advindos, via valorização do trabalho. Nossa sociedade terá uma
lei que valoriza a liberdade de empresa (princípio da livre iniciativa) ao
extremo, sem garantir a proteção que o direito do trabalho buscou construir, no
decorrer dos últimos 90 anos. No entanto, devemos sempre lembrar que a
Constituição é clara, no artigo 1º, inciso IV, ao afirmar que o Brasil
constitui-se em um Estado Democrático de Direito que tem por fundamento os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, em iguais proporções. O PL
4330 subverte esse princípio e “desregula'' a balança, em nítido desvalor do
trabalho. Caso o PL seja convertido em lei será o caos e seguramente não
colaborará nem para garantir segurança jurídica aos empresários e, muito menos,
para construir coesão social, tão necessária nos dias de hoje, em que vemos a
população sair às ruas clamando por melhores condições de vida.
Por fim, teremos a legislação
mais liberal do mundo ocidental, mais ainda que a lei chilena e seguramente
mais que qualquer ordenamento europeu (todos garantem, pelo menos, que haja
solidariedade jurídica entre os elos). Iremos de encontro à Recomendação 198,
da Organização Internacional do Trabalho, que sugere um maior nível de proteção
à relação de emprego, e uma valorização crescente do princípio da primazia da
realidade como fundamental na determinação da relação de trabalho. Enfim, o PL
legitima todo tipo de fraude a que estamos acostumados a denunciar e a atacar,
no curso da atividade inspecional. Um verdadeiro retrocesso.
Marcus
Barberino, juiz do Trabalho da 15a Região
O pior cenário é não haver
nenhuma defensa ao direito de negociação coletiva e de representação sindical.
Ao permitir o deslocamento de uma atividade estratégica da empresa para
qualquer prestador de serviço, você está alterando de modo unilateral a
formação dos contratos coletivos de trabalho e, por via indireta, dos contratos
individuais.
Outra dimensão dramática é não
estabelecer a solidariedade entre prestadores e tomadores. Se eles criam os
riscos não podem ter limitação quanto à responsabilidade dos riscos em face de
terceiros.
A questão, tal como posta, acaba
por colocar o crédito do trabalhador em posição de proteção jurídica inferior a
de um particular (pois aqui incide as regras do Código Civil) e da União (cuja
violação de créditos tributários implica responsabilidade solidária dos
devedores).
Enfim é a mercantilização tão
violenta quanto na época da revogação da “poor law'' inglesa em 1834.
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