Por que Paulo Freire incomoda? A quem? O que esses discursos revelam? Levamos os questionamentos a alguns especialistas, com o intuito de resgatar parte da história e da contribuição do educador pernambucano.
Por: Ana Luiza Basílio,
Centro de Referências em Educação Integral
Via: PragmatismoPolitico
“Chega de doutrinação
marxista. Basta de Paulo Freire”. “É preciso colocar Paulo Freire em seu devido
lugar, que é o lixo da história”. Esses foram alguns ecos decorrentes das
manifestações contra o governo no mês de março (relembre aqui), que reuniram pessoas
nas ruas de várias capitais brasileiras.
Por que Paulo Freire
incomoda? A quem? O que esses discursos revelam? Levamos os questionamentos a
alguns especialistas, com o intuito de resgatar parte da história e da
contribuição do educador pernambucano, declarado patrono da educação brasileira
em 2012, pela lei 12.612, sancionada pela presidente Dilma Rousseff.
O
lugar de Paulo Freire
Para o professor
titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e diretor
do Instituto Paulo Freire, Moacir Gadotti, é preciso rigor para falar de Paulo
Freire. Ele relembra as incontáveis publicações e referências ao educador,
algumas disponíveis na internet, e completa: “ele tem um lugar no mundo
garantido pelo reconhecimento do seu trabalho, com contribuições na educação,
nas artes, nas ciências e até na engenharia”.
Por isso, avaliá-lo
somente como educador não basta, opina o professor emérito da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), Miguel Arroyo. “A radicalidade dele tem que ser
entendida dentro de nossa história”, garante. Daí a necessidade de se
reivindicar o lugar de Paulo Freire. “Sobretudo por parte dos educadores populares
que assumem, para além de suas ideias, as concepções de mundo que estão por
trás delas”, reflete Gadotti.
Uma
pedagogia concreta
O rechaço a Paulo
Freire não é novidade e tampouco recente. Tem início já nos fins dos anos 50 e
começo da década de 60, momento em que o educador idealiza a educação popular e
realiza as primeiras iniciativas de conscientização política do povo, em nome
da emancipação social, cultural e política das classes sociais excluídas e
oprimidas. Sua metodologia dialógica foi considerada perigosamente subversiva
pelo regime militar, o que rendeu a Freire o exílio. O educador, entretanto,
não deixou de produzir e nesse período escreveu algumas de suas principais
obras, dentre elas, a Pedagogia do Oprimido.
Arroyo entende que as
manifestações atuais contra o educador só mostram que os setores conservadores
continuam tão reacionários quanto na época da ditadura. “E isso surge em um
momento em que o partido político que está no poder foi eleito,
majoritariamente, pelo cidadão pobre, negro, nordestino. A rejeição a Freire, a
meu ver, revela uma questão premente de nossa história de reconhecer ou não o
povo como sujeito de direitos”, garante, ponto sobre o qual o educador se apoia
para chamar a pedagogia freiriana de “pedagogia dos oprimidos concretos”.
“O que caracteriza a
nossa história é não reconhecer os indígenas, os negros, os pobres, os
camponeses, os quilombolas, os ribeirinhos e os favelados como sujeitos
humanos”, condena o educador.Em sua análise, essa crença serviu, ao longo da história,
como justificativa ideológica para que as classes dominantes escravizassem e
espoliassem esses setores sociais. “Tudo isso a partir de uma visão de que
somos o símbolo da cultura, civilidade e os outros a expressão da
sub-humanidade, subcultura, imoralidade. É isso que nos acompanha ao longo da
vida e Paulo Freire se contrapôs a isso, inverteu esse olhar”, analisa Arroyo.
O que ele considera
“como um dos pontos mais radicais e politicamente avançados de Freire” é a
valorização da cultura, das memórias, dos valores, saberes, racionalidade e
matrizes culturais e intelectuais do povo, contrapondo-se à lógica de que era
necessária a inferiorização de uns para garantir a dominação de outros. Na
educação, sobretudo, essa radicalidade implica em enfrentamentos. “Existe a
ideia de que nós, cultos, racionais, conscientes, vamos fazer o favor de,
através da educação, conscientizar o povo; para Freire não se tratava de
conscientizá-los, moralizá-los, mas de reconhecê-los como sujeitos de uma outra
pedagogia, capaz de dialogar com essas culturas, identidades e histórias”,
esclarece Arroyo.
Paulo
Freire em outros contextos
Essa centralidade nos
sujeitos, própria da concepção freiriana, também apoiou a organização de
trabalhadores. Na cidade de São Paulo, quando à frente da Secretaria Municipal
de Educação, na gestão de Luiza Erundina, Paulo Freire aprovou o Estatuto do
Magistério importante não só aos docentes como a todos os profissionais da
educação, como avalia a atual chefe de gabinete da deputada estadual Luiza
Erundina, Muna Zeyn, que trabalhou com o educador na gestão paulistana. “Para
ele, todos estavam em processo de educação, do bedel à faxineira, passando pelo
professor”.
Influência também na
construção de organizações e movimentos de massa, caso do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para a militante do setor de Educação do
Movimento Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), de Pernambuco, Rubneuza Leandro
de Souza, a combinação entre necessidade e conscientização foi vital para a
organização do movimento. ”Sobretudo em relação à educação. Começamos a nos
perguntar qual educação queríamos. Sabíamos que não era aquela que desconhecia
o contexto das crianças e as estigmatizava como filhas de ladrões,
criminalizando a nossa luta”, critica.
Nas escolas do MST, há
uma necessidade de que o conhecimento escolar se articule com a realidade e que
a educação se estabeleça como elemento de transformação, “libertadora, contra
hegemônica e emancipadora”. Rubneuza explica que, nos acampamentos, onde muitas
vezes não há escolas próximas, o movimento busca auto organizá-las e que,
quando o assentamento é conquistado, há um processo de formalização da
instituição. “Isso porque a educação formal entra em contradição com nosso
processo de luta, quase sempre porque a escola não entende a realidade que a
criança vive”.
Pela
integralidade dos indivíduos
Há quem ataque a
pedagogia freiriana, tratando-a como doutrinária. Gadotti explica que a grande
questão é entender que Freire reconhecia a educação como ato político, de
cultura. “A primeira aula de alfabetização em Angicos (Rio Grande do Norte) foi
sobre cultura”, relembra o educador. A educação, a formação e até a
alfabetização inicial precisa passar pela cultura, pelo reconhecimento do
sujeito que conhece, que faz sua leitura do mundo. E é por ser cultural que a
educação é política, não no sentido partidário, mas de decidir a vida na pólis
(cidade), discutir a vida, o mundo que queremos”.
Ainda de acordo com
Gadotti, a educação deve ser vista como um dos elementos de uma cidade
educadora , que prevê a educação integral, e não deve se referir só ao
conhecimento e ao saber simbólico, mas também ao sensível, ao técnico. “A
integralidade do saber é o tecido técnico, simbólico, político, cultural e
implica também a politicidade do ato educativo. Ninguém nega que a educação
supõe valores, princípios, ética. É isso que falta discutirmos na educação
brasileira hoje”, constata Gadotti.
Por
mais Paulo Freire
Em sua análise, a
perseguição a Paulo Freire na época da ditadura não apenas o expulsou do
Brasil, mas também do sistema de ensino do país, impondo um autoritarismo e
associando a educação ao chamado tecnicismo pedagógico, que a afasta de
qualquer caráter social. “Não conseguimos sequer agregar qualidade a esse
tecnicismo, mas o fato é que ele é uma herança da ditadura e continua forte”,
evidencia.
Para Gadotti, o ethos
freiriano não está presente nas escolas hoje. “Estaria se tivéssemos uma
educação participativa, democrática, em que a escola formasse para a cidadania,
como está na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB). Não é só formar para o trabalho, mas para a cidadania, para que
o povo participe da construção de uma nação. Ao invés de ‘basta de Paulo
Freire’, precisamos de mais Paulo Freire para um país mais decente”, reforça.
Arroyo também
compartilha da opinião e demonstra preocupação, sobretudo com a proposta de
educação integral. “Não podemos entendê-la como mais tempo de escola, nesse
mesmo contexto que estamos inseridos. Seria um desrespeito para o povo e iria
contra tudo o que Paulo Freire defendia”, alerta. É fundamental, em sua
opinião, que as propostas pedagógicas incorporem os indivíduos em suas
totalidades. “Precisamos entender as crianças que chegam às escolas em diversos
contextos, o da família negra, o da favela, como filhos de mulheres
trabalhadoras. Que saberes e lutas eles trazem consigo para a educação?”,
indaga.
“Essas são experiências
reais, totais, que exigem uma proposta plural, integrada”, problematiza. Para
ele, é urgente pensar que a educação, o currículo diversificado e os saberes
prévios podem dar conta de devolver a humanidade roubada das crianças e
adolescentes oprimidos. “A função da escola só é integral se ela passa a ser um
espaço digno, justo, capaz de recuperar o que lhes roubam”, conclui.
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