Desmoralizados, parlamentares
tentam recuperar imagem votando proposta demagógica. Espinoza já estudava
manipulação do medo, que alimenta onda conservadora
Por: Cauê Seigner Ameni e Hugo
Albuquerque
Via: Outras Palavras
A maioridade penal no Brasil,
como se sabe, é atingida aos 18 anos. Agora, deputados e senadores, em uma
baixa histórica e justificada da sua popularidade, resolveram subir sua própria
aprovação popular abaixando para 16 anos a maioridade: querem responder ao
suposto “clamor popular” a favor da medida. Para tanto, eles desenterraram um
Projeto de Emenda à Constituição dos anos 90 — a de número 171, ironicamente, o
mesmo número do crime de estelionato no Código Penal.
Dizer que a maioridade tem um
critério etário significa dizer que a partir daí, um cidadão, em perfeito
estado mental, pode ser penalmente responsável pelos seus atos. No Brasil,
adotamos há muito o referencial de 18 anos, o que é semelhante à maioria dos
países civilizados do mundo.
Para ajudar no esclarecimento
dessa comparação entre a legislação de diversos países, o Ministério Público do
Paraná publicou uma tabela baseado no estudo “Porque dizer não à redução da maioridade penal”, de 2009, realizado em parceria da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH/Pr) com o Fundo das Nações Unidas para
a Infância (Unicef).
No total de 53 países contidos no
relatório, pelo menos 42 deles adotam a mesma idade que o Brasil como limite
para a responsabilidade criminal de seus cidadãos. Ou seja, 79% dos países
indicados pela Unicef têm 18 anos como maioridade penal.
Argumentos publicados na pagina
oficial do senador
Magno Malta (PR/ES) usando dados manipulados.
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Isso tudo desconstrói os
argumentos pela redução da maioridade: seus defensores alegam falsamente que os
países desenvolvidos já reduziram a idade minima em seus respectivos Estados.
Ou que a maioridade penal no Brasil “seria alta”, misturando propositalmente a
“Responsabilidade Juvenil” com “Responsabilidade Penal de Adultos” (Maioridade
Penal).
A Responsabilidade Juvenil é
sempre mais baixa do que a Responsabilidade Penal comum: comparar uma coisa com
a outra, é o velho sofisma de comparar laranjas com bananas para confundir as
pessoas.
A diferença é abissal: a
“Responsabilidade Penal Juvenil”, que em nossa legislação responsabiliza toda
pessoa acima de 12 anos, visa punir o menor infrator, segundo Estatuto da
Criança e do Adolescente, com medidas socioeducativas, como obrigação de
reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade
e internação. Já a “Responsabilidade Penal de Adulto”, fixada para maiores de
18 anos, visa punições mais severas na alçada das responsabilidade criminais,
como o encarceramento, além de gerar consequências no prontuário do cidadão.
Portanto, se ocorrer
a aprovação da PEC 171/93, a nossa legislação penal do país sai do patamar em
que estão Alemanha, França, Inglaterra, Países Baixos, Noruega, Chile,
Argentina, Uruguai, entre outros países referenciais no assunto, para se
encontrar ao lado de regimes autoritários e dos Estados Unidos — que em matéria
penal, não lembram muito o que chamamos uma
democracia, sem contudo, ter taxas de criminalidade baixas.
Aliás, vale como exemplo que
países como a Alemanha chegaram a reduzir a maioridade penal, mas depois
tiveram de voltar atrás. Lá, a responsabilidade juvenil começa atualmente aos
14 anos e vai aos 18, sendo que entre os 18 e os 21 vigora inclusive um sistema
penal mais brando, chamado sistema para os “jovens adultos”. E a Alemanha é
certamente um país mais tranquilo do que o Brasil — e também mais do que os
Estados Unidos, país apontado como “exemplo”, seja em matéria de delinquência
juvenil ou de adultos.
Tampouco são as crianças e
adolescentes brasileiros os responsáveis pela criminalidade brasileira: algo em
torno de 1% dos crimes foram cometidos por adolescentes, os quais aparecem nas
estatísticas da violência muito mais como vítimas do que como culpados — pois,
obviamente, uma criança ou um adolescente, por razões físicas e mentais, é
muito mais vulnerável em relação a um adulto do que o contrário.
Como bem pontuou a jornalista e
escritora Eliane Brum em um texto seminal sobre o tema:
- A redução da maioridade penal
como medida para diminuir a impunidade e aumentar a segurança é uma fantasia
fabricada para encobrir a verdadeira violência. Segundo o Unicef, dos 21
milhões de adolescentes brasileiros, apenas 0,013% cometeu atos contra a vida.
Mas são eles que estão sendo assassinados sistematicamente. Hoje, os homicídios
já representam 36,5% das causas de morte por fatores externos de adolescentes
no país, enquanto para a população total corresponde a 4,8%.
Na verdade, segundo relatório da
UNICEF do ano passado (ver aqui e aqui), fica até pior: somos o segundo país
que mais pratica violência contra pessoas de 0 a 19 anos no mundo em números
absolutos — e o sexto, em número proporcional à população. Um escândalo, sem
dúvida.
Isso responde à velha falácia: “E
se um jovem praticasse violência contra você ou algum ente querido seu?” Bom,
na verdade, é mais fácil que alguma criança ou adolescente do nosso meio social
sofra uma violência do que, como pregam os profetas do apocalipse, que uma
criança ou adolescente qualquer cometa alguma violência contra nós mesmos ou
nossos entes queridos.
Do mesmo modo que a lógica do
encarceramento geral não diminuiu a violência. A conversa fiada de que prender
mais nos torna mais seguros não se cumpriu. Já somos a terceira maior populaçãocarcerária do mundo, sendo que entre 1990 e 2012, nossa população carceráriacresceu seis vezes. E prendemos sobretudo negros e pardos. Pior ainda é saber
que quase metade dos nosso presos aguarda julgamento, sendo tecnicamente
inocentes. As estatísticas de violência, por outro lado, são inequívocas: aviolência no Brasil só cresceu desde então.
Mas dados racionais não
interessam: os manipuladores constroem superstições que lhes são úteis política
e economicamente, enquanto a massa assustada simplesmente age à base do
comportamento de manada. O fabuloso aparato de mídia de massa, sem dúvida
alguma, é o que permite esse quadro de oportunismo e histeria coletiva.
A tirania do medo
Nada diferente do que o filósofo
luso-holandês Baruch de Spinoza viu há quase quatrocentos anos: a tirania
depende antes de tudo do medo e do desespero alheios, o que é insuflado pelo
discurso supersticioso; por meio dele, casos específicos são analisados como
regra geral, experiências pessoais isoladas, e medos profundos, são colocados
acima da verdade para inverter a realidade e, finalmente, fazer as pessoas
lutarem contra seus próprios interesses — como, antes de Spinoza, percebeu
Étienne de La Boétie no seu magnífico Discurso sobre a Servidão Voluntária de
1549.
A mesma população que é levada a
apoiar a redução da maioridade penal, baseada no medo da violência, na verdade,
está atentando contra seus próprios filhos, os quais estarão mais expostos ao
aparato punitivo. Pior ainda, com a punição sendo elencada como resolução para
os problemas da juventude, fatores como o descaso com a educação, a falta de
políticas sociais para os jovens e tantas outras coisas permanecerão
obscurecidos.
Os políticos que defendem a
redução da maioridade penal elegeram um inimigo (bem oportuno) e uma causa,
insuflaram a histeria coletiva e querem ganhar votos e popularidade com isso.
Como a mídia policial, que diante dos dados alarmantes de violência, prefere
construir uma narrativa fantasiosa de mocinho contra bandido — e um bandido com
raça e classe social bem definida — em vez de defender políticas públicas.
A economia política do voto, da
audiência midiática, de interesse corporativos na privatização das prisões, da
corrupção burocrática em relação ao sistema prisional, que desvia verbas e
vidas e, também, das facções criminosas que vivem da extorsão dos próprios
presos, comemora. Ela será animada com mais “carne nova no pedaço”.
Por que a violência não é
diminuí? Porque não interessa mexer nas suas causas e, também, porque ela dá
dinheiro e poder para muitos políticos e empresas. Simples assim. É a
possibilidade de lucrar com o mal, de faturar sobre a iniquidade, levantada por
Slavoj Žižek em relação ao Capitalismo.
A bancada da bala e os
partidos-polícia
Não à toa, a face pública da
promoção da PEC do estelionato é a “bancada da bala”: um grupo parlamentarmultipartidário, conservadores que contam com o apoio do PSDB, DEM, PSD, PMDB,
PP, PTB, PSC entre outros partidos menores, insuflados por parlamentares
geralmente ligados às polícias e ao exército — os quais defendem medidas
populistas, imediatistas e falsas para resolver a crise da “segurança pública”.
Nos bastidores — e na política, o
bastidor importa mais do que o palco — os principais articuladores são os
caciques do PMDB, que num misto de chantagem e oportunismo, querem diminuir o
desprestígio do Congresso e, ainda, tenta angariar alguma vantagem do governo
Dilma, que é contrário à medida — mas que, no entanto, ela não poderia vetar
esta medida diretamente, pois mudanças constitucionais não passam pela
aprovação (ou veto) da Presidência. Ainda, o presidente da Câmara, Eduardo
Cunha, e o presidente do Senado, Renan Calheiros, estão envolvidos em inúmeros
casos de corrupção, inclusive no rumoroso escândalo da Petrobrás.
Nesse misto de oportunismos de
variados graus, de jogos de fumaça e de vontade genuína de fascismo, junto com
uma histeria social inflamada diariamente, o bode expiatório da vez são nossos
adolescentes: vítimas de uma guerra não declarada na qual já estão julgados e
condenados. Seu sacrifício é parte necessária da pretendida marcha do Brasil
rumo ao neoconservadorismo. E esta marcha é, direta ou indiretamente, animada
pela insanidade que adoeceu mais ainda nossa política e nossa sociedade.
Reverter o processo é uma batalha morro acima, mas não podemos nos isentar de
combater esse bom combate agora — daqui a pouco, será tarde demais.
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