Por: Maria Lucia Fattorelli*
Depois de pelo menos 14
anos investigando o processo de endividamento público no Brasil – tanto em
âmbito federal como de estados e municípios – e em outros países da América latina,
Europa e África, determinamos a existência do que passamos a denominar “Sistema
da Dívida”.
A compreensão desse
sistema ajuda a decifrar a geração de crises sucessivas do modo de acumulação
capitalista, bem como o funcionamento de diversos países, que submetem decisões
estratégicas a interesses do setor financeiro privado.
Neste breve artigo
abordo a atuação do Sistema da Dívida durante a recente crise financeira
deflagrada na Europa e Estados Unidos a partir de 2008, apresento dados do endividamento
público no Brasil e finalizo relatando a relevante experiência do Equador com a
realização de uma auditoria oficial de sua dívida pública.
Sistema da Dívida Em
geral, as pessoas acreditam que o endividamento público é o resultado do
acúmulo de recursos recebidos por meio de empréstimos tomados por entes
públicos (governo federal, estadual, municipal, ou empresas estatais).
No entanto, diversas
investigações realizadas pela Auditoria Cidadã da Dívida no Brasil e em várias
partes do mundo têm demonstrado que grande parte das dívidas públicas são
geradas por alguns mecanismos que atuam tanto em sua origem como em seu
contínuo crescimento. Tal geração de dívida sem contrapartida real é uma
distorção do instrumento do endividamento
público.
O “Sistema da Dívida”
corresponde à utilização do endividamento público às avessas, ou seja, em vez
de servir para aportar recursos ao Estado, o processo de endividamento tem funcionado
como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos,
que são direcionados principalmente ao setor financeiro privado.
Para operar, esse
sistema conta com um amplo conjunto articulado de engrenagens, compostas por
privilégios legais, políticos, econômicos, em conjunto com a grande mídia, sob
o domínio do poder financeiro mundial.
O livro “Auditoria
Cidadã da Dívida Pública: Experiências e Métodos”ii - lançado ano passado no
Brasil e Peru e este ano na Europa (em Bilbao, no País Basco) - detalha tais mecanismos,
sobressaindo-se os seguintes:
·
A geração de dívidas sem contrapartida
alguma ao país ou à sociedade;
· aplicação de mecanismos meramente
financeiros (tais como taxas de juros abusivas, atualização monetária
automática e cumulativa, cobrança de comissões, taxas, encargos etc.) que fazem
a dívida crescer continuamente, também
sem qualquer contrapartida real;
· refinanciamentos que empacotam dívidas
privadas e outros custos que não correspondem a entrega de recursos ao Estado,
provocando elevação ainda maior no volume do endividamento, e beneficiando unicamente ao
setor financeiro privado nacional e internacional;
· esquemas de “salvamento de bancos” que
promovem a transformação de dívidas privadas em dívidas públicas;
· utilização do endividamento gerado de
maneira ilegítima como justificativa para a implementação de medidas
macroeconômicas – Planos de Ajuste Fiscal - determinadas pelos organismos
internacionais (principalmente FMI e Banco Mundial), tais como: privatizações, reforma
da previdência, reforma trabalhista, reforma tributária, medidas de controle inflacionário,
liberdade de movimentação de capitais etc. Tais medidas são contrárias aos interesses
coletivos e visam retirar recursos públicos para destiná-los ao “Sistema da
Dívida”, beneficiando principalmente ao mesmo setor financeiro.
Conjuntura
internacional: financeirização, crise “financeira” e crise “da dívida”
A atual crise financeira deflagrada nos
Estados Unidos da América do Norte (EUA) em 2008, logo espalhada por toda a
Europa, escancarou a forma de atuação do setor financeiro e a usurpação do
instrumento do endividamento público.
Essa crise já vinha
sendo anunciada há anos, por razões inerentes ao funcionamento do modelo de
acumulação capitalista, mas adquiriu proporções gigantescas devido à desregulamentação
financeira aliada ao uso de sofisticada tecnologia, que tem possibilitado a realização
de milhões de operações por segundo, envolvendo várias instituições de
diferentes partes do mundo, inclusive e especialmente paraísos fiscais. Em
ambiente marcado por exacerbado poder da tecnocracia e da grande mídia
controlada pelo poder econômico, tremenda especulação e corrupção, além do
sigilo bancário, a crise logo se expandiu para o setor estatal e atingiu outros
setores: social, ambiental, alimentar, com repercussões sérias que vão muito
além do campo financeiro.
A crise tem suas bases
nas contradições do próprio sistema capitalista: a ânsia de lucro às custas da
redução de salários e benefícios dos trabalhadores provoca a perda de sua capacidade
de consumir, afetando diretamente os interesses dos capitalistas. Sem
perspectivas de aumento de lucros no setor produtivo, o sistema promove a desregulamentação
financeira e passa a buscar cada vez mais o ramo financeiro e as operações
especulativas, marcadas pela criação exagerada de papéis; os produtos
financeiros especulativos e sem lastro, principalmente os denominados
derivativos – que têm sido chamados de ativos “tóxicos”.
Apesar de inúmeras
denúncias de fraudes, as nações mais ricas do mundo decidiram “salvar”
instituições financeiras. Diversas medidas foram tomadas, destacando-se: a
estatização parcial de instituições financeiras; a realização de aportes
diretos dos respectivos Tesouros Nacionais aos bancos, que chegaram a contar
com aprovação do Parlamento em alguns países; a emissão de grandes quantidades
de dólares e euros que foram repassados diretamente aos bancos; e a criação de
“bad banks”, isto é, bancos paralelos destinados a absorver os excessos de “ativos
tóxicos”.
Nos EUA, por exemplo, a
auditoria feita pelo Departamento de Contabilidade Governamental revelou a
transferência de 16 trilhões de dólares, secretamente pelo FED a bancos e
empresas, sob a forma de empréstimos com taxas de juros próximas de zero, no período
de dezembro/2007 a junho/2010. Esse fato foi denunciado pelo Senador
norteamericano Bernie Sandersiv.
O resgate dos bancos
que foram considerados “grandes demais para quebrar”, ilustra claramente o
“modus operandi” do Sistema da Dívida, uma vez que todas as medidas adotadas para
esse salvamento provocaram o crescimento acelerado da dívida “pública”. Logo
que a dívida é gerada dessa forma ilegítima, a referida dívida “tem que ser
paga” e o ônus tem sido transferido para toda a sociedade por meio de planos de
ajuste fiscal que reduzem gastos sociais para que os recursos se destinem para
o pagamento do serviço da dívida.
Na Europa, autoridades
da União Europeia e ministros de finanças também decidiram “salvar” os bancos.
É importante ressaltar que desde o ano de 2008 já se previa que tal decisão empurraria
os países para uma crise, conforme reveladora notícia publicada pelo periódico
The Telegraph em 11 de fevereiro de 2009v. Apesar disso, prevaleceram os
interesses do setor financeiro privado e
a conta foi transferida para a sociedade por meio do endividamento “público”.
O Sistema da Dívida no Brasil
Os números da dívida
pública brasileira indicam que já estamos em situação de crise da dívida que de
fato configura um gargalo e compromete fortemente os gastos sociais necessários
ao atendimento dos direitos sociais devidos à população.
Relativamente à dívida
externa federal, em 31/12/2013, esta alcançou US$ 485 bilhões (R$ 1,15 trilhão,
considerando do câmbio de R$ 2,30). É verdade que a maior parte dessa dívida
externa é privada, porém, possui a garantia do governo brasileiro, e, dessa
forma, constitui uma obrigação que deve ser computada em sua integralidade.
Por sua vez, a chamada dívida interna federal atingiu o
patamar de R$ 2,986 trilhões em
31/12/2013. A maior parte dessa dívida está nas mãos de bancos nacionais e
internacionais.
Dessa forma, a dívida
brasileira alcançou no final de 2013, R$
4,1 trilhões ou 85% do PIB.
Em geral, os números
divulgados pela grande mídia e até mesmo por alguns setores do governo apontam
cifras bem mais amenas que essas. Isso ocorre devido à utilização de diversos artifícios
para “aliviar” o peso dos números, tais como:
•
Dívida “Líquida” em lugar da dívida bruta;
•
Juros “reais” em lugar dos juros nominais;
•
Contabilização de parte dos juros nominais como se fosse amortização;
•
Exclusão da Dívida Externa “Privada” das estatísticas, desconsiderando a
existência
de garantia pública sobre essa dívida privada;
•
Gráficos que fazem a comparação Dívida Líquida com o PIB, mostrando uma
ilusória
queda do montante da dívida.
O gráfico a seguir
retrata a destinação dos recursos do Orçamento Geral da União Executado em 2013
e mostra que a dívida pública é a principal responsável pelo não atendimento
das necessidades urgentes do povo brasileiro. Em 2013, o total do orçamento
executado foi R$ 1,783 trilhão, dos quais nada menos que 40,30%
(correspondentes a R$ 718 bilhões) foram destinados a juros e amortizações da
dívida. Enquanto isso, a Saúde foi contemplada com somente 4,29%, a Educação
com 3,7%, a Assistência Social com 3,41%, a Reforma Agrária com apenas 0,15% e
o Saneamento Básico com 0,04%.
Cabe ressaltar que o
percentual de 40,30% destinados ao endividamento federal corresponde ao
quádruplo do valor destinado a todos os 26 estados, ao Distrito Federal e aos 5.570
municípios brasileiros, ou seja, 10,43% do orçamento da União. Essa distorção
representa uma afronta ao Federalismo, princípio consagrado no art. 1o de nossa
Constituição Federal.
Os orçamentos de
diversos estados e municípios também são afetados pela subtração de recursos
para o pagamento de dívidas públicas, ou seja, o Sistema da Dívida se reproduz internamente,
em âmbito regional.
No caso dos estados, o
Sistema da Dívida operou fortemente no final da década de 90, quando foi
realizado o refinanciamento de dívidas pela União. Esse refinanciamento veio inserido
em um pacote que exigiu a privatização do patrimônio estadual, rigoroso
programa de ajuste fiscal que exigiu cortes de gastos com pessoal e impediu
investimentos públicos, além da absorção de passivos de bancos estaduais no
esquema denominado “PROES”. Dessa forma, o refinanciamento pela União já nasceu
inflado por valores que os estados nunca chegaram a receber, correspondentes a
tais passivos cuja natureza se desconhece completamente.
Adicionalmente, não foi
levado em consideração o baixo valor de mercado dos títulos estaduais, tendo
esses sido refinanciados a 100% de seu valor de face, o que significou enorme
beneficio ao setor financeiro em detrimento das finanças estaduais.
Em cima dessa base
inchada, foram aplicadas condições financeiras inaceitáveis entre entes
federados: o Tesouro Nacional passou a exigir dos estados o pagamento de
remuneração nominal, composta por uma combinação de atualização monetária
mensal, automática e cumulativa, calculada pelo IGP-DIvi , acrescida de juros
de 6 a 9% ao ano. Para se ter uma ideia do peso desses juros nominais, no ano
de 2010, o Estado do Rio Grande do Sul pagou ao governo federal remuneração de
mais de 18% sobre toda essa dívida. O Estado de Minas Gerais pagou ainda mais;
quase 20%, porque as taxas de juros reais aplicadas são de 7,5% a.a., mais o
IGP-DI, enquanto do Rio Grande do Sul é 6%. O município de São Paulo foi o mais
onerado, pois paga juros reais de 9%a.a. sobre o saldo da dívida corrigido
mensalmente pelo IGP-DI. Naquele mesmo ano, o governo federal aplicou bilhões
de dólares em títulos da dívida norte-americana, cuja remuneração é quase nula.
O resultado desse
refinanciamento em bases tão extorsivas tem provocado a multiplicação da dívida
por ela mesma, em processo inconstitucional de acumulação de juros sobre juros.
Nesse contexto, quase todos os entes federados estão contraindo dívida externa junto
ao Banco Mundial e outros bancos privados internacionais para pagar à União, transformando
dívida interna ilegítima (e até ilegal sob vários aspectos) em dívida externa.
Além de significar uma aberração tomar empréstimo externo para pagar ao governo
federal, tais empréstimos externos ficam sujeitos à variação cambial
(justamente quando as moedas internacionais estão em trajetória de alta) e às
perversas imposições dos credores internacionais, que exigem implementação de
antirreformas e redução de gastos que envolvem a desestruturação das carreiras
de Estado e dos serviços públicos para a população.
É devido a esse
“Sistema da Dívida” que um país tão rico como o Brasil, considerado como sendo
a 7a maior economia do mundo, amarga índices inaceitáveis de miséria, fome, desemprego,
precariedade de serviços públicos e é um dos mais cruéis em concentração de renda.
A ONU nos classificou em 79o lugar no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano) em 2014. Esse inaceitável paradoxo tem raízes históricas, mas nas
últimas décadas a principal responsável por essa distorção é a dívida pública.
Exemplo do Equador e a necessidade de realização de completa auditoria da dívida
Uma das principais
tarefas já desempenhadas por nosso movimento foi a efetiva participação na
comissão de auditoria oficial da dívida do Equador, processo que gerou a redução
dos gastos com a dívida, ao mesmo tempo em que aliviou recursos que permitiram
a multiplicação dos investimentos sociais naquele país, especialmente em
educação e saúde. São impressionantes as visíveis mudanças em decorrência dos
efetivos investimentos sociais que em uma década saltaram de 600 milhões de
dólares em 2001 para quase 5 bilhões de dólares em 2011, como mostra o gráfico
a seguir, que retrata a inversão entre os gastos com a dívida e os gastos
sociais naquele país:
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O que se pretende com a
realização da auditoria da dívida aqui no Brasil é exatamente o mesmo,
principalmente considerando que já foram determinados inúmeros indícios de ilegalidades
e ilegitimidades nas investigações já realizadas inclusive durante a CPI da
Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados.
. Além disso, a crise
financeira internacional tem afetado o Brasil, e pode se aprofundar ainda mais
diante do processo de desregulamentação financeira que tem avançado no país,
permitindo emissão e negociação de produtos financeiros sem limites; justamente
o que provocou a crise lá fora.
Não podemos continuar
destinando a maior parcela do orçamento federal ao pagamento de uma dívida
nunca auditada, com fortes indícios de ilegalidades e ilegitimidades, enquanto faltam
recursos para as necessidades sociais básicas da população e para a garantia
dos direitos e da dignidade no trabalho dos servidores públicos brasileiros.
Por isso defendemos a
realização de completa auditoria dessas dívidas, com participação cidadã, a fim
de deter esse “Sistema da Dívida” e modificar a inaceitável realidade de
injustiças sociais vigente em nosso país.
O papel da cidadania é
de suma relevância, pois além de conhecer o processo, deve procurar incidir
nessa realidade para modificar esse vergonhoso esquema que tem submetido nosso
país a uma escravidão incompatível com a situação econômica real, suficiente
para garantir vida digna e abundante para todas as pessoas.
É necessário conhecer
que dívidas os povos estão pagando. A AUDITORIA é a ferramenta que nos permite
conhecer e documentar este processo.
* Maria
Lucia Fattorelli é coordenadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida no
Brasil desde 2001. Atualmente, integra a Comissão Internacional instituída pelo
Parlamento da Grécia para realizar auditoria da dívida do país. Foi membro da Comissão
para a Auditoria Integral Equatoriana (2007-2008) e assessorou a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da dívida pública na Câmara dos Deputados do
Brasil (2009-2010).
Fonte: http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2014/10/USP-14-10-2014-O-Sistema-da-Divida-no-Brasil-e-no-Mundo.pdf
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